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Centre de recherches en histoire et épistémologie comparée de la linguistique d'Europe centrale et orientale (CRECLECO) / Université de Lausanne // Научно-исследовательский центр по истории и сравнительной эпистемологии языкознания центральной и восточной Европы

-- Patrick SERIOT : «Proposições para uma Escritura da História da Linguistica Soviética : a Noção de "Discurso sobre a Língua"», Cadernos de estudos linguisticos, n°24, Univ. de Campinas (Brésil), 1993, p. 131-150.

 

         "Os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam, muitas vezes se ajustam, mas também se ignoram ou se excluem" (M. Foucault, L'ordre du discours, p. 54)

        Se lemos a imprensa soviética atual, ao menos a que é favorável á perestroika, encontramos uma dessas terríveis questões que voltam regularmente desde que se trate de fazer o balanço da história da URSS : "como é que se passou de uma via inicialmente justa a resultados tão trágicos, quando é que isto começou a ir mal, quando é que tudo se abalou, quando é que se começou a sair do caminho certo?
        Da resposta a estas questões depende em grande parte o tipo de solução a propor para a profunda crise de identidade ideológica e nacional que sacode o país atualmente.
        Esta interrogação sobre a história e sua reescrita não parece ainda, no momento, ter atingido o domínio da história da ciência, em particular a das ciências humanas que, ainda mais que a sociologia, tem, na URSS, tentado apreender o que faz o liame social: a linguística, ou ciência da linguagem.
        Ora, da história da ciência à história simplesmente é só um passo quando um Estado declara assentar sua legitimidade sobre uma concepção cientifica de história. Se nâo é certo que a história das matemáticas na Grande Bretanha tenha grande coisa a nos dizer que já não saibamos da história da Grande Bretanha, no entanto dever-se-ia esperar da história da lingüística soviética um esclarecimento pouco conhecido da história da União Soviética ela própria.
        Uma questão se coloca : pode-se fazer, da história da lingüística soviètica, um relato, produzir uma narratíva? Pode-se alinhar uma sucessão de textos, sabiamente arranjados por ordem cronológica, que representariam, à escolha dos pesquisadores, o progresso do saber, ou, ao contrário, deslizamento progressivo da ciência linguistica no obscuro delírio estalinista? Pode-se fazer o relato desses textos, que se tornariam documentos de uma história das idéias? Pode-se fazer uma antologia de pedaços escolhidos de autores linguistas, estágios do progresso de uma ciência única?
        Mas já se procurou fazer a triagem, a separar o que, nos escritos sobre a língua, deriva da linguistica e o que permanece no exterior? Para evitar de ter de fazer essa separação a priori, proporei inicialmente a noção de "discurso sobre a língua".
        Há, na URSS dos anos 20-30, produção de "discurso sobre a lingua" em vários lugares. Mesmo no fim dos anos 30, não encontramos uma monofonia estrita, um puro e simples domínio, um dogma estabelecido uma vez por todas, assim como também não encontramos uma fonte única de discursos sobre a língua, um poder político, por exemplo, que seria o grande ordenador, o homem orquestra ditando aos cientistas o que eles tem a dizer e a fazer. E, de outro lado, no trabalho sobre a lingua respondendo a um comando diretamente político (jazykovoe stroitsl'stvo, likbez, jazykovaja politika, soznatel'noe vmešatel'stvo v jazyk... : edificação lingüística, liquidação do analfabêtismo, política linguística, intervenção consciente na língua) não se pode falar de pura derisão sob pretexto que haveria intrusão da ideologia no trabalho científíco, ou vontade política de encontrar uma resposta científica a questões políticas.
        Para além da experiência prática que cada um de nós pode fazer do fato de que há línguas, é mais do que necessário observar como são numerosas e mesmo contraditórias as definiçóes do que é a lingua.
        O exemplo da URSS, este país ao mesmo tempo tão familiarmente próximo e tão profundamente distante, pode nos persuadir que a questão da definição seja uma coisa muito diferente da discussão sobre o sexo dos anjos. Não há no mundo um outro pais em que o problema da definição de língua tenha tido (ou tenha ainda) tal força política.
        Foi o país da vanguarda da modernidade na reflexão sobre a linguagem e suas manifestações. Basta que se pense em Jakobson, em Troubetzkoy, em Baudoin de Courtenay. E também o pais que fuzilou seus linguistas nos campos de concentração precisamente por sua definição de língua, quer se pense em Polivanov, em Vološinov, em Drezen, e a tantos outros ainda.
        Esta definição de um objeto da ciência, definição capaz de fazer morrer, de obrigar ao exílio como de fazer subir às mais altas honras, que tem ela de tão terrível, de tão singular, que a diferencia dos outros objetos de ciência?

         I/

        Para estabelecer a hipótese que faço de que há uma relação particular á língua e à representação em geral na URSS, proponho apresentar um tema próprio da epistemologia lingüística soviética dos anos trinta, uma questão que marcou profundamente este pais na primeira metade de sua exístência, qual seja:
        "Porque as línguas mudam?", questão que logo se transformou em "Pode-se mudar a língua?", com seu corolário teórico: "o que é necessário que seja a língua, para que possamos modificá-la?" E esta questão de teoria lingüística torna-se rapidamente uma questão política: qual é a relação da lingua com a sociedade, com a nação?
        Começarei minha tentativa de narração em 1922, no momento do fim da guerra civil e da proclamação da Federação das Repúblicas soviéticas[1].
        Nos anos que seguiram a Revolução de 1917 a criação de uma lingüística marxista era bem a última coisa que tinham na cabeça os dirigentes bolcheviques, ocupados como estavam no comunismo de guerra depois, com a instauração da NEP, em questões de simples sobrevida. Nesta época os linguistas continuam os trabalhos anteriores sem que se manifeste uma ligação muito clara entre suas atividades cientificas e os acontecimentos políticas, diferentemente do que se passa, por exemplo, em literatura. A escola formalista russa prossegue sua ascenção. Sergio Karcevskij volta de Genebra em 1919 e traz consigo as idéias estruturalistas saussurianas que encontram na Rússia um terreno eminentemente favorável, preparado pela escola dita de Kazan (I.Baudoin de Courtenay, N.V.Kruševskij). Esses anos terríveis são também os mais férteis na atividade do circulo lingüístico de Moscou, com Jakobson, Troubetskoy, Porzezinskij, que participarão da elaboração do funcionalismo e da fonologia. Acontece o mesmo com Petrogrado para a OPOJAZ, sociedade de estudo da linguagem poética em que encontramos os nomes de Polivanov, Tynjanov, Šklovskij, Jakubinskij, etc. Malgrado o entusiasmo que a teoria da lingua suscitava nos círculos formalistas, os estudos historico-comparativos se mantinham fortes nas Universidades e a "velha guarda" continuava a praticar a gramática comparada como antes da Revoluçâo no campo da eslavistica e dos estudos russos. Curiosamente, é em um outro discurso sobre a lingua, a saber a literatura, que a idéia de mudar a língua, e mesmo de criar uma língua inteiramente nova vai aparecer rapidamente, por exemplo nos poetas futuristas.
        Entretanto, numerosos sinais chegavam regularmente do poder politico, e que iam ter repercussões nâo negligenciáveis sobre a propria prática da lingüística.
        Em 1922 a União Soviética tinha de particular o fato de que devia ser a primeira sociedade inteiramente consciente de si mesma, uma sociedade que tinha seu destino em suas mãos, que dominava seu provir. Mas era também uma sociedade que herdava do Império Russo uma situação inextricável do ponto de vista étnico e linguístico. Basta se representar o que era querer colocar as massas em movimento, como se dizia então, quando se tem que lidar com mais de uma centena de línguas, de contornos frequentemente mal delimitados, cuja maioria não tinha escrita e nunca havia sido estudada nem descrita.
        Em 1922 é adotado o decreto sobre o analfabetismo que proclama que: "Todos os habitantes da República de 8 a 50 anos que não sabem ler nem escrever devem aprender a ler e a escrever em sua lingua materna ou em russo, segundo a escolha."
        Nunca se falou como nesses primórdios dos anos 20 de prática e de eficácia prática. Um dos temas centrais da revolução cultural reclamada pelo poder ê a "unidade da teoria e da prática". Como para Trotsky a arte é necessariamente sempre utilitária, o mesmo acontecia com a ciência, que não devia se acantoar em uma erudição fechada. O poder político tinha necessidade de especialistas em língua. Com efeito, como as massas podiam participar da edificação da sociedade em construção se elas não sabem ler? Como podiam ser educadas eficazmente sem a palavra escrita? Mas sem alfabetos, sem gramáticas, sem dicionários multilingues e monolingues, como podia haver palavra escrita?
        Seria falso ver nessa demanda do poder endereçada aos linguistas só considerações práticas e conjunturais. A criação de um alfabeto supõe uma abordagem fonológica dos sons da língua. A fonologia coloca delicados problemas de ontologia das unidades da língua. E onde entra em jogo a ontologia, o materialismo dialético está diretamente concernido.
        A Revolução, desfazendo o tecido social anterior, tinha sem dúvida destruído bastante das relações simbólicas. Mas ela tinha deixado intacto um sistema simbólico: a lingua, o mais carregado de sentidos para a manutenção da identidade nacional.
        Para tentar fazer se manter coesa a frágil federação das nacionalidades em condições materiais extremamente precárias, destruindo um dos mais fortes laços simbólicos da identidade, a saber, a religião, é preciso concentrar o trabalho prático sobre a identidade nacional e fazer disto uma chave para a planificação racional da construção da futura sociedade socialista. Segundo Marx e Engels, a revolução deveia ser mundial e as nacionalidades deviam desaparecer. Quando ficou claro que este dia não era iminente, foi preciso estabelecer pactos em todas as frentes, exterior, interior, social e nacional.
        Os pactos tocavam no mais fundo da doutrina. Porque, de um lado, por exemplo, quando da proclamação da Federação, em 30 de dezembro de 1922, Stalin declara ao Congresso dos Soviets que esta Federação, primeira etapa da fusão das nacionalidades, será "um passo decisivo na fusão dos trabalhadores do mundo inteiro em uma só República soviética mundial". Por outro lado, Lênin, como os outros bolcheviques, reclama a igualdade completa para todas as linguas e todas as nações. O que tem por conseqüência que a URSS ê, ainda hoje, em princípio um estado sem língua de estado única, sendo que o russo é apenas uma entre as outras.
        Entretanto Lênin tinha, muito cedo (no 16 de maio de 1917 em sua "Resolução sobre a questão nacional"), expresso seus temores a respeito dos fatores de divisão que podiam constitutir segundo ele "laços nacionais fortes entre as culturas burguesa e proletária das nações individuais". A finalidade do POSDR em 1917 era fazer se desenvolver "uma cultura internacional do proletariado mundial"(ib.).
        De qualquer modo, depois do abastecimento, ê o problema da comunicação que reclamava uma solução prioritária.
        Parece-me importante lembrar que a língua è uma maneira particular de fazer o liame social, um fundamento da identidade supra-individual, o que faz que se possa dizer "eles são eles, nós somos nós".
        Ora, esse laço não só tem contornos imprecisos e cambiantes (há domínios transitórios em que ê difícil dizer se se está além ou aquém da língua), mas também esse laço evolui no tempo.
        Os linguistas eram chamados não mais a observar as linguas mas a dirigir a evolução delas[2]. Como iriam fazer?
        Chegado onde estou, vou ter necessidade, para continuar, de uma noção provisória, que me permita não ter de me dividir entre a epistemologia dos paradigmas de Kuhn, as epistemes de Foucault, as condições de produção do discurso de Pêcheux, ou a aceitabilidade de J.P. Faye. Este conceito provisório eu o chamarei, de modo voluntariamente simplificador de "ar dos tempos", e o definirei rapidamente como o "conjunto de coisas que se diz e que se pode dizer em um momento dado a propósito de um dado domínio", um discurso aceitável, uma posição sustentável. Quando digo "ar dos tempos", é preciso ver quanto este ar é próprio de um espaço geo-ideológico. Em 1922 na URSS este espaça estava longe de estar constituído. Até aí a lingüística Russa não tinha fixado nenhum valor primordial á linguagem enquanto fato social. E do lado dos linguistas de concepcões diametralmente opostas as dos marxistas que os laços da língua com a sociedade que a fala tinham sido explicitamente evocados.
        "E provável, a priori, escrevia A.Meillet em sua Conferência de abertura do curso de gramática comparada no Collège de France em 1906, que toda modificação da estrutura social se traduza por uma mudança das condições nas quais se desenvolve a linguagem...Se é verdade que a estrutura social è condicionada pela história, não são jamais os fatos históricos em si que determinam diretamente as mudanças lingüísticas, e são as mudanças de estrutura da sociedade que, elas apenas, podem modificar as condições de existência da linguagem. E preciso determinar a que estrutura social responde uma estrutura lingüística dada e como, de uma maneira geral, as mudanças de estrutura social se traduzem por mudanças de estrutura lingüística."
        Em 1926 ainda e Saussure que è dado como representante da escola sociológica francesa (Šor-26, p.3), modelo sociológico a ser introduzido na linguistica soviêtica. Alguns anos mais tarde Saussure se torna, como Polivanov, um representante da linguistica burguesa, modelo a ser extirpado definitivamente da linguistica soviética (Zolotov-32).
        Estamos na primeira metade dos anos 20. Nesta época em que se elaboram os grandes princípios da gestão política das sociedades, o marxismo-leninismo, se distinguindo da ideologia nazista em formação na mesma época se opõe explicitamente a qualquer modo de raciocínio genético. Não há nem natureza humana nem transmissão biológica de gens, o homem é um produto das suas condições socio-econômico-ideológicas de existência, é um animal educável. Quanto á sociedade, se ela pode e quer tomar em suas mãos seu destino, ela deve também forjar seu próprio sistema de comunicação, o que pode se retraduzir de duas maneiras no domínio que nos concerne : seja "para mudar a sociedade é preciso mudar a língua", seja, "mudar a sociedade ê mudar a língua".
        Encontrou-se, para responder a essa demanda política, um linguista, já idoso no momento da revolução, Nicolas Marr. Sua teoria, á qual ele chegou por vias independentes do marxismo, correspondia quase perfeitamente au novo ar dos tempos que soprava na União soviètica. Pode-se resumi-la assim:
        - A lingua ê uma superestrutura que repousa sobre a base econômica, da mesma forma que a arte ou os sistemas jurídicos.
        Da noção de língua como superestrutura se segue toda uma série de conseqüências :
        - os estados de língua se sucedem como reflexo de mudanças de formação socio-econômicas ;
        Não há famílias de línguas mas estados sucessivos pelos quais passam necessariamente todas as línguas.
        No interior de um mesmo estado as línguas evoluem por cruzamento, por hibridação umas com as outras.
        Na medida em que toda superestrutura tem um caráter de classe, a língua também tem um caráter de classe.
        Por isso, não há, propriamente dita, correspondência entre língua e nação, a noção de língua nacional é um engano, e as relações fundamentais sào entre língua e tipo de sociedade em um momento dado de sua evolução.
        Em um certo sentido (mas em um só) as linhas gerais do marrismo convinham bem à URSS dos anos 20, por seu caráter internacionalista, sua adaptação a um Estado multinacional em que devem ser superados os conflitos de tipo lingüístico e, en fim, por sua compatibilidade com o objetivo final de uma sociedade sem classes e sem diferenças de línguas.
        Nesta época este discurso sobre a língua, que correspondia à visão marxista da felicidade futura da humanidade enfim unida encontrou bastante simpatia, também no estrangeiro.
        Foi aí que o que estou chamando ar dos tempos toma toda sua importância : é o que torna epistemologicamente lícito um tipo de questão que em outro lugar ou em outra configuração ou outro momento é epistemologicamente ilícito. E quando digo um discurso lícito, seria preciso dizer mais exatamente a única posição sustentável, um discurso obrigatório, um discurso aceito, um discurso que funciona, com efeitos materiais coneretos, tal como a criação de institutos de pesquisa. Eis uma ilustração imediata. Em 1866 a Sociedade de linguistica de Paris foi criada. Ela inscreve em seus estatutos de fundação duas interdições, isto è, dois temas de pesquisa que nâo tem estatuto científico ; as pesquisas sobre a origem das línguas e as sobre a lingua universal. Sessenta anos mais tarde em um outro lugar a aceitabilidade desses temas é tal que eles fazem parte do programa principal do Instituto da linguagem e do pensamento, criado em Petrogrado em 1920.
        Marr estuda aí a "paleontologia da linguagem", em relação direta com a etnogênese. No fim dos anos 20 ele trabalha em uma tarefa pràtica: a elaboração de novos tipos de língua por hibridação das línguas existentes. Ele reencontra este tipo de hibridação, por exempla, no russo, que não se pode analisar corretamente, segundo ele, sem levar em conta a contribuição heterogênea do turco, do finês e do citio do Norte do Cáucaso. E só bem depois dos poetas futuristas que os linguistas atacam a própria matéria da língua querendo modificá-la.
        Durante este tempo, no nível administrativo, se estabelece o que chamamos em russo a edificação lingüística do pais (jazykovoe stroitel'stvo). A Constitutição soviética de 1924 garante que todos os documentos oficiais serão publicados em línguas oficiais das Repúblicas. Mas, de novo, aparece diante de nós um obstáculo de natureza definitória.
        O que é a língua de uma República Soviética? E a lingua falada pela etnia majoritária vivendo sobre o território da república. No caso de certas línguas, foi preciso fabricá-las inteiras. Assim, o contínuo dialetal entre os turcofones da Asia central era tal que se poderia ter visado a criação de uma koinê, ou lingua comum repousando sobre uma variedade dialetal média, aceitável e compreensível por todos os locutores turcofones. Uma outra via é que foi seguida, pois o antigo Turquestão foi dividido em cinco repúblicas, e o kirguez, o usbek, o kazac e o turquemen se tornaram línguas oficiais cujas características repousavam sobre variantes as mais centrífugas em relação ao continuum.
        Certas línguas eram faladas por locutores infinitamente mais numerosos que aqueles de uma língua que tinha estatuto republicano. Era o caso dos tártaros do Volga. Mas a Tartária era uma república autônoma, não uma república federada, e os tártaros não tem direito à totalidade de um ensino em sua língua, diferentemente dos kirguezes menos numerosos que eles.
        Um outro problema é colocado pelas línguas das minorias sem estatuto territorial como o yiddish. Nos anos 20 havia um teatro yiddish, uma imprensa e uma literatura yiddish, mas o yiddish não era uma língua oficial.
        Enfim, há a delicada separação da parte e do todo em todo lugar. A Constitutição georgiana proclama que o georgiano é uma língua oficial da república da Geórgia. Ora, a Geórgia ela própria tem suas minorias nacionais, tais como a Abkazia. Mas o estatuto da língua abkaze é inferior ao georgiano, porque a Abkazia não tem o mesmo nível territorial que a Geórgia.
        Este pensamento por categorias discretas, descontínuas, não deriva da pura e simples lógica administrativa. Ela decorre da definição stalinista da nação como uma "comunidade humana estável historicamente constituída, nascida na base de uma comunidade da língua, território, vida econômica e de formação psíquica que se traduz em uma comunidade de cultura". Esta citação é de 1913. Lembremos que Stalin ia se tornar comissário do povo para as nacionalidades.
        Este conjunto de traços, colocada de lado a dimensão econômica, lembra fortemente a visão romântica da nação ou mais exatamente do povo tal como se pode encontra-la por exemplo em Herder no fim do século XVIII. O povo-nação é uma categoria fundamentalmente fechada.
        Mas esta categoria fechada é dificil de conciliar com a teoria da fusão das línguas e das nações na sociedade futura.
        Esta contradição no entanto não ê ainda, nos anos vinte, um grande obstáculo ao trabalho sobre a língua.
        Qual é a parte dos especialistas da língua nesta "edificação lingüística"? Como os escritores, um pouco mais tarde, serão chamados os "engenheiros das almas", Vinokur em 1923 compara os linguistas aos "engenheiros da língua". Em um artigo cujo título vai fazer sucesso nas empresas normativas não somente na URSS mas em todos os países socialistas em seguida[3], "Kul'tura jazyka", ou "cultura da língua", ele defende a idéia que a lingüística, ou a "tecnologia da língua" tem um dever primordial que é o de intervir conscientemente na evolução da língua.
        Vinokur rejeita a concepção que prevalece nos neo-gramáticos do século XIX da lingua como organismo com leis imanentes, mas ele não admite tampouco a definição de língua de Saussure como um sistema inacessível a qualquer mudança deliberadamente provocada do exterior. Para el toda processo de fala é um processo social e como tal pode e deve ser organizado racionalmente. A língua é uma máquina que deve ser melhorada e consertada.
        Eis um ponto em que eu gostaria de mostrar a relação entre uma definição da lingua e um tipo de trabalho em linguistica. O ar dos tempos na URSS dos anos 20 está mais para a máquina, a tecnologia, a transformação científica da natureza do homem, em resumo, para a domesticação (o domínio). O que é a lingua nesse ar dos tempos? Não é um organismo autônomo, não è o reflexo da alma de um povo, é uma criação artificial, no sentido de objeto fabricado e que, como tal, pode ser considerada do exterior, para ser modificada á vontade.
        E este ar dos tempos que faz Máximo Gorki dizer, em 1928: "Parece-me que nós, os homens, estamos no direito de dizer: tudo o que chamamos cultura, essa segunda natureza que é criada pela nossa ciência, nossa técnica e nossa arte, em uma palavra, tudo o que nos diferencia dos animais, tudo isto é artificial. E natural ao homem, porquanto ele é um animal, de lamber, ou beber na mão, de viver nu, de dar rugidos, mas não é natural inventar Prometeu, Fausto ou Don Quichote. Vivemos todos em casas, cidades, entre objetas fabricados pela força de nossa razão, de nossa imaginação e de nossa vontade para que a vida nos seja mais fácil e mais agradável. Se os homens tomam consciência que lhes é necessário falar todos a mesma língua, também isso se fará. (…) E tempo que o homem se ponha na cabeça que ele pode tudo."
        O ar dos tempos ê esse discursa receptivel que permite a Jakovlev em 1928 propor uma fórmula matemática de construção de um alfabeto para toda língua, ou ao sábio Ciolkovskij, o futuro pai da cosmonáutica russa, de inventar em 1927 uma máquina de escrever funcionando com um alfabeto universal que permita transcrever todas as línguas do mundo.
        Mas na segunda metade dos anos vinte a demanda do poder político face aos cientistas se torna mais precisa. A sociedade nova em vias de se construir deve ter uma ciência nova, uma ciência marxista. Esta ciência deve ser histórica e unificada.
        No fim dos anos vinte a teoria de N. Marr toma uma posição dominante na lingüística soviètica. Rejeitando todos os raciocínios que poderiam repousar sobre uma noção de pureza étnica, ele coloca um ensino que deve impedir qualquer manifestação de chauvinismo russo-grande na URSS. Para ele a pureza étnica dos Eslavos como a origem comum das linguas eslavas e um mito, pois nâo pode haver base genética para as formações sociais assim como não pode para os sistemas de línguas.
        No entanto ainda ai a definição é pesada de conseqüências para o futuro.
        Nos fins dos anos 20 ê claro que a ciência, na URSS, deve antes de tudo ter uma aplicação prática e imediata: o objeto próprio da ciência na nova sociedade soviética é o próprio futuro dessa sociedade. Assim, uma das questões cruciais que se colocam em 1925 é esta: a sociedade futura seria qualitativamente diferente da de agora do ponta de vista nacional? As opinióes divergem, alguns pensam que a finalidade urgente do comunismo é realizar uma cultura universal única e indiferenciada.
        Stalin a define de forma pragmática em 10 de maio de 1925 com sua célebre fórmula : "proletário pelo conteúdo, nacional pela forma, eis a cultura humana universal para a qual marcha o socialismo.“ .Ele admite uma assimilação a longo prazo pelo enriquecimento recíproco das línguas, mas no imediato reafirma o florecimento das culturas nacionais.
        Vemos assim pouco á pouco se formar um feixe de contradições na política da língua, que repousa, a meu ver, na coexistência de duas posições implícitas inconciliáveis: as línguas, como as nações, são categorias discretas, isto è, descontínuas, ou então elas são categorias não discretas, ou seja, pode haver passagem gradual de uma a outra. Ou as línguas podem se misturar, ou então elas podem se combater e se dominar sem se assimilar.O ar dos tempos não era suficientemente coercisívo, ou suficientemente estabelecido para resolver neste momento a contradição que ia se aprofundar em seguida.
        Mas o ar dos tempos sopra em uma direção cada vez mais diferente dos outros ares do mesmo tempo : os linguistas no estrangeiro começam a se inquietar com o abismo que se faz entre eles e seus colegas soviéticos. A. Meillet, em uma resenha feita em 1928 de uma obra de N.Marr, mesmo disposto a segui-lo en suas posições sociológicas, escreve isto: "a ciência está fora da política, e quem aí mistura política e nacionalismo, comete uma falta imperdoável, quaisquer que sejam as circunstâncias".
        Na época da morte de Narr em 1934 pode-se dizer que a lingüística ocupa o primeiro lugar das ciências humanas na URSS. No entanto seria errôneo ver aí uma analogia com o papel de "ciência piloto" que a lingüística pode desempenhar nos anos 50 e 80 no Ocidente. Na URSS, nos anos 30, a lingüística não é o modelo epistmológico cuja metodologia própria era para ser imitada e aplicada a outros domínios diferentes daqueles inicialmente previstos, este papel não podendo ser desempenhado senão pela materialismo histórico. A lingüística ê um exemplo privilegiado de aplicação da teoria marxista do estudo histórico do desenvolvimento das sociedades, e esta posição permanece dominante até o meio dos anos trinta. Mas a lingüística tinha além disso uma responsabilidade terrível, porque se esperava dela uma função prática de predição do futuro da sociedade soviética.
        Em meados dos anos trinta, um certo número de pontos parecem adquiridos e obrigatórios para a lingüística soviética:
        - a língua é a matéria do pensamento e da consciência;
        - a consciência, como a língua, são categorias da superestrutura;
        - enfim as mudanças linguisticas sâo uma resposta às mudanças sociais tal como elas sâo refletidas pelo pensamento através da estrutura da Iíngua.
        Mas permanece uma tensâo entre a idêia de língua como rflxo secundârio de um estado de sociedade ou de uma mentalidade ligada a um estado de sociedade, de um lado, e de outro lado a idêia de que a língua, como produto artificial da atividade humana, pode e deve ser submetida a uma intervençâo consciente da parte dos linguistas, da comunidade falante em seu conjunto, ou ainda do poder político em nome da dominaçâo, do controle e da previsâo da mudança em língua.

         II/

        Venho agora à segunda parte de minha narração, onde veremos o que se passou logo que a tensão se tornou forte demais.
        Stalin chamou 1928 o ano da grande virada, Isto é certamente verdadeiro do ponto de vistada organização da economia e do poder politico.
        Mas no domínio que nos ocupa aqui, eu colocaria a grande virada de preferência em 1937, no meio desses anos negros que foram 1936-37-38.
        Nos anos 30 e 40 os lingüistas no Ocidente se ocupam essencialmente de problemas de morfologia e de sintaxe.
        E o caso na URSS igualmente, com a exceção de que, partindo da concepção de estados da história das línguas como reflexo do pensamento, os lingüistas soviéticos trabalham na construção de uma tipologia histórica da morfologia das línguas e da estrutura das frases, procurando confirmar a tese fundamental de que há uma ligação direta entre a estrutura sócio-econômica e a estrutura lingüística.
        Um exemplo particularmente esclarecedor é Meščaninov, um discipulo de Marr, que estuda o reflexo do desenvolvimento do pensamento na história dos tipos de proposição e das categorias gramaticais. Três estados principais vão assim se suceder obrigatoriamente na transformação de toda lingua. (Meščaninov-40)
        Ao primeiro estado, o mais arcaico, corresponde a construção passiva. Nesse estado não há diferenciação entre a palavra e a frase, ou entre o sujeito e o predicado, pois o mundo é percebido como uma potência mitica que atravessa o homem e seu ambiente. E assim que a construção passiva é dominante nas línguas aglutinantes (p. ex. dos indios da América do Norte).
        Vê-se que a lingüística soviética, a partir de bases teóricas totalmente opostas, alcança o tipo de trabalho da etnolingüística americana da mesma época, o que se chamou a hipótese Sapir e Whorf, a saber, que o pensamento está em relação direta com a lingua na qual ele se exprime.[4]
        O segundo estado é caracterizado pela construção dita ergativa: o sujeito de um verbo intransitivo está no mesmo caso que o objeto de um verbo transitivo, diferente daquele do sujeito de um verbo transitivo. Para esse tipo de línguas o sujeito, ainda que não totalmente no controle de sua ação, começa justamente a se ver enquanto ator. Encontra-se esta construção no basco e essencialmente nas línguas do Cáucaso, línguas que Marr conhecia particularmente bem.
        O terceiro estado é o estado dito ativo, tal como o conhecemos em francês ou em russo: o sujeito de um verbo transitivo está no mesmo caso que o sujeito de um verbo intransitivo, diferente do objeto de um verbo transitivo. Teríamos aí a plena expressão reconhecida de um Agente, esse terceiro estado seria o resultado atual da evolução das línguas. Ele é encontrado nas línguas indo-europèias e semíticas.
        A teoria dos estados repousa sobre o postulado fundamental de que a estrutura sintática da proposição é o reflexo de um tipo de pensamento, ele mesmo reflexo da estrutura sócio-econômica.
        Meščaninov, no entanto, à medida que avança seu trabalho de tipologia, observa a coexistência dos diferentes tipos de construção na maioria das línguas que estuda. E por volta dos anos 40 começa a ser posta em dúvida no trabalho mesmo dos lingüistas marristas a idéia de relação direta de reflexo, de condicionamento sócio-econômico das estruturas sintáticas. Meščaninov trabalha para descobrir "categorias conceituais universais, que, exprimidas diferentemente nas diferentes linguas, refletem a unidade da consciência humana". Mas ele tem necessidade de justificar seu trabalho, o que faz dizendo que ele pode servir de quadro teórico para as gramáticas contrastivas, que eram muito necessárias na segunda fase da campanha de alfabetização, aquela que concernia uma extensão geral do bilingüismo russo-nacional.
        Como o trabalho dos lingüistas sobre a língua se inscreve no ar dos tempos do fim dos anos trinta?
        Em 1936 é promulgada uma nova constituição, que põe à frente a noção de Estado do povo todo inteiro, de comunidade homogênea. No mesmo momento os lingüistas prosseguem suas pesquisas em sociologia da linguagem e produzem um discurso sobre a lingua que parece pouco compatível com a nova definição da nação como o povo todo inteiro.
        Assim, Žirmunskij no mesmo ano explora o problema da estratificação social das linguas, e continua colocando em causa a idéia de língua nacional empreendida por Nicolas Marr.
        Desde a morte de Marr o papel dominante da lingüística nas ciências humanas na URSS decresee: por exemplo, as ligações da lingua e do pensamento não são mais do monopólio dos lingüistas e são estudadas por psicólogos como Vygotskij, que reivindicam a seu turno o papel de ciência piloto para a psicologia, levada a ser a ciência sobre a base da qual se criaria uma nova personalidade humana.
        Em torno de 1937 se realizam um certo número de mudanças fundamentais na política internacional, nas demandas práticas da campanha de alfabetização, nas estruturas e na hierarquia das instituições, que criam um clima mais favorável para a lingüística tradicional e favorecem a deterioração da posição privilegiada da lingüística marrista. Um índice das mudanças é a publicação das obras maiores dos lingüistas ocidentais: Saussure é publicado em 1933, Sapir em 1934, Vendryes em 1937, Meillet em 1938.
        Mas o problema chave deste período para o dominio que nos ocupa ů a politica das nacionalidades e suas justificaçõs ideológicas.
        Em 1937 a direção do vento já mudou na questão nacional. A Alemanha hitlerita é vista não somente como uma ameaça para o mundo, mas sobretudo para a própria União Soviética, descartando por aí mesmo todo sonho de comunismo internacional. No lugar do cosmopolitismo, ao qual Marr devia muito de sua potência, a ameaça exterior reforça a solidariedade soviética.
        A tendência à solidariedade coincide com a segunda fase da campanha de alfabetização. As maiores linguas não escritas das Repúblicas da União tinham sido providas de alfabetos latinos no fim dos anos vinte, e o primeiro passo em direção da alfabetização generalisada tinha sido dado. A segunda fase devia ser o bilingüismo russo-nacional e a extensão do ensino do russo. Este torna-se obrigatório em todas as escolas não-russas em 1938. E nesta mesma época que as línguas que tinham um alfabeto latino mudam seu sistema de escrita sobre a base do alfabeto cirilico.
        Durante os anos de guerra aparecem novas instituições que se concentram nos estudos russos. A ameaça exterior é um grande fator de unificação e a identidade por trás da qual os povos da União Soviética se unificavam era russa pela forma. E em 1942 que é criado o Instituto da língua russa na Academia de Ciências, independente do Instituto de lingüística; a Universidade de Moscou abre uma cadeira de estudos russos e eslavos em 1943 (que não existia enquanto tal antes).
        Volta a ser licito, não epistemologicamente mas ideologicamente, estudar a tradição cultural russa pré-revolucionária; é a época em que se põe à frente o papel primordial da ciência russa dentro da ciência mundial. Volta a ser legitimo estudar e publicar a tradição lingüística russa.
        Entretanto, o discurso sobre a lingua dentro da lingüística "oficial", aquela da teoria marrista, permanece sem mudança. Esse discurso fica cada vez mais deslocado em relação a um outro discurso, aquele de escritores como Gorky, que já em 1929, no primeiro Congresso dos escritores camponeses, declarava (Gorky-29, citado em Lafite-83, p. 434) :

"o inesgotável tesouro da lingua popular russa deveria permitir aos escritores dar ao que constitui a materia de seus livros uma expressão brilhante, forte, precisa. Pode-se certamente aprender a lingua russa nos clássicos, mas pode-se ser ter ainda mais sucesso nisto buscando-se naquele que é sua fonte primeira, o povo…"

        Neste texto se anuncia a imensa ambigüidade do termo povo, que pode se entender sob sua interpretação socialista ou sua interpretação romântica, unanimista.
        Esta ambigüidade fundamental vai se resolver com a vitória sobre a Alemanha e o nacionalismo bravio, por vezes fanático que a segue, alimentado pelo sentimento de estar envolto por um mundo hostil. Vejamos por exemplo a história da palavra "cosmopolitismo".
        Na Grande enciclopédia soviética publicada em 1937 o cosmopolitismo é "um termo político de origem grega que denota a aspiração da revolução proletária a transformar o mundo inteiro em uma pátria para a classe trabalhadora .
        Na edição de 1952 da mesma enciclopédia, o cosmopolitismo é "uma ideologia burguesa reacionária que rejeita as tradições nacionais e a soberania nacional, prega a indiferença para com a pátria e a cultura nacional, e reclama o estabelecimento de um governo e de uma cidadania mundial".
        No fim dos anos quarenta a tensão que se manifestara desde há dez anos entre os diferentes discursos sobre a língua atinge seu paroxismo. Assim como a biologia soviética rejeita a genética como teoria racista, a lingüística soviética nega toda relação genética entre as línguas e se agarra à idéia de determinismo estrito da língua pela estrutura social.
        Os lingüistas marristas não são mais capazes de responder à demanda prática, que é agora um programa de ensino do russo em grande escala que o regime do pós-guerra estimava ideologicamente válido e necessário. A teoria marrista, ideologicamente útil no passado, tornava-se inteiramente inadaptada para a nova tarefa que consistia em unificar os Soviéticos por detrás da ciência russa e da língua russa.
        Em julho de 1950 Stalin mesmo ia intervir no debate lingüístico através de uma série de retificações aparecidas no próprio Pravda.
        Por uma ironia da controvérsia de 1950, Stalin mantém exatamente a posição que havia provocado perseguições de lingüistas como Polivanov vinte anos antes, a saber, que a língua não sofre mudança revolucionária. A teoria sobre a homogeneidade da massa falante que ele desenvolve está de acordo com o texto da Constituição de 1936 sobre a homogeneidade social da sociedade soviética.
        Suas teses podem ser recolocadas nisto:
        - a língua não é uma superestrutura
        - a língua não é um fenômeno de classe, visto que ela pode tanto "servir" a burguesia como ao proletariado
        - a língua não sofre transformação revolucionária após uma revolução social. Paul Lafargue não tem razão ao dizer   que a língua          francesa mudou subitamente após a revolução francesa.
        - a língua é um meio de comunicação para a comunidade toda inteira, e não para uma só classe.
        - a tarefa da lingüística é estudar as leis internas de evolução da língua.
        Stalin faz distinção entre as regras conservadoras da gramática e o léxico, mais flexível, e mais permeável às influências da realidade extra-lingüística, o que permite dar conta das mudanças sobrevindas na língua russa, ainda que esta não tenha dado um salto revolucionário, assim como justificar o afluxo de palavras russas nas línguas nacionais da URSS sem risco para a identidade dessas línguas. Um novo tipo de raciocínio sobre a lingua é atribuído para a politica lingüística:  Stalin,  recusando a idéia de mistura das línguas, fala da vitória de uma língua sobre as outras. Uma moldura é atribuída para justificar a supremacia do russo na URSS.
        Essa moldura, que se torna obrigatória, para a lingüística soviética até logo após a desestalinização começada em 1956, não tinha aparecido como um raio no céu azul. A intervenção era eminentemente politica. Mas do ponto de vista que nos interessa, a saber, o discurso sobre a lingua, é preciso notar que era uma maneira de reduzir a tensão entre dois discursos incompatíveis. Incompatíveis por exemplo eram a idéia que prevalecia na lingüística marrista de que a língua era dividida em classes e a idéia da língua da nação toda inteira, idéia que podemos ver avançada desde o fim dos anos vinte em escritores como Gorky ou desde 1945 em lingüistas não marristas como Vinogradov, que escreve no ano do fim da guerra:

"A criação da uma língua nacional comum é uma etapa fundamental na história de cada povo. E somente em tal língua que a nação recebe os meios de desabrochar total de suas forças espirituais para participar plenamente no movimento cultural mundial. Só uma língua nacional pode se tornar a base de uma ciencia e de uma literatura nacional. Ela assegura a união de todas as forças do povo, ela contribui para consolidar a potência politica de uma nação e para o aumento de sua influênça entre os outros Estados. E natural que a língua nacional, come bem coletivo do povo tudo inteiro, […] seja objeto do orgulho do povo e de seus cuidados mais atentos" (Vinogradov-1945, p. 9).

         (citação que não teria desmentido, penso, lingüistas românticos como August Schlgel ou Franz Bopp).

         III/

        A. Meillet disse: "Cada século tem a gramática de sua filosofia", o que foi retraduzido por L.-J. Calvet pela fórmula: "Cada sociedade tem a lingüística de suas relações de produção".
        Quanto a mim, quis propor uma interpretação das ligações entre uma sociedade e sua lingüist "cada sociedade tem o discurso sobre a língua corresponde ao ar dos tempos".
        Tentei então narrar uma história, uma história de acontecimentos da         produção lingüística na URSS. Mas encontrei dificuldades para construir uma linearidade. Pode-se narrar as agitações institucionais, a luta dos centros de pesquisa pelo poder. Pode-se avaliar as exclusões e as promoções administrativas. Pode-se fazer também a história da tentativa ou da tentação do dominio político do signo e da representação. Mas isso não nos faz avançar no conhecimento do objeto da lingüística na URSS.
        E que a história de uma ciência, ou a história de um conceito, não se narra. Não pode ser uma narração. Isto tem a ver com a história estrita, mas não a acompanha, não a redobra. Ou de preferência se sobrepõe a ela.
        O que me impediu de produzir uma narração? São as idas e vindas constantes nas datas, nas definições, nos conceitos.
        Só que uma constante, talvez, nessas inversões sucessivas: é uma filosofia da história que afirma o sentido único do futuro humano sob a categoria do progresso triunfante, aquela mesma que no Ocidente está há décadas em plena ruína: mais que uma filosofia hegeliana, é uma filosofia positivista e cienticista. Mas mesmo ai, não há continuidade verdadeira, pois o lugar concedido às formas de evolução das linguas difere totalmente conforme os períodos, entre Marr e Stalin, por exemplo, ou no interior das diferentes declarações de Stalin sobre a língua.
        E que na URSS, nos anos trinta, a lingüística está em "porte à faux".
        Estranhamente, não ocorre o mesmo nas outras ciências, que deveriam a priori ter conseqüências bem mais diretas sobre o real. E o caso da biologia: os delírios antigenéticos de Lyssenko, que declarava poder criar variedades híbridas de trigo e de milho que poderiam produzir na Sibéria, não impediram que sua teoria fosse dominante e a única reconhecida na URSS até o fim do período khrouchtchéviano. Seria a biologia menos perigosa para o poder que a problemática da língua?
        Tentei fazer funcionar o discurso soviético sobre a língua em torno de uma questão: "por que as linguas mudam e pode-se mudar a língua?" e mostrar quanto o discurso sobre a língua é constrangido de todos os lados por um "ar dos tempos" propriamente soviético: seria preciso ir às últimas conseqüências do quadro epistemológico no interior do qual se iria pensar a língua.
        Mas a noção de ar dos tempos que introduzi marcou seus limites e suas insuficiências, pois nunca se viu um ar dos tempos tão estratifiçado, cheio de tantos deslocamentos, de encaixes e de recortes heterogêneos.
        Assim por exemplo, a noção de unanimidade em uma comunidade lingüística homogênea não tem a mesma história nos escritos de lingüística, nos textos literários e nos documentos oficiais (nós o vimos com a constituição de 1936).
        Do mesmo modo a teoria da língua nacional não tem a mesma história conforme os tipos de discursos aos quais a relacionamos. O discurso sobre a lingua sustentado pelos lingüistas tem justamente isto de altamente singularr:  ele se encontra no fim dos anos trinta indo em direção inversa às outras séries discursivas sobre a língua.
        E aí que se colocam os problemas específicos da análise do discurso sobre a lingua na URSS: as periodizações ficam por se construir, as sincronias por delimitar.
        Do ponto de vista epistemológico, várias sincronias podem não ser contemporâneas, no sentido estritamente cronológico: pode haver aí deslocamento entre as séries (os discursos sobre a lingua nos textos literários, nos textos administrativos ou nas reflexões políticas sobre a política da lingua podem divergir, se recortar, estar em contradição parcial).
        A história de uma ciência não é uma linha contínua, a história das etapas na via retilínea que leva do erro à verdade, da ignorância ao saber.
        E a história das rupturas, das descontinuidades, das retomadas, das mudanças de perspectiva e de pontos de vista, e até das mudanças de objeto.
        Todas essas séries discursivas podem coexistir, paralelamente, se afrontar ou se ignorar.
        Por exemplo, há um modelo único ou modelos incompatíveis por trás das séries disparatadas de discurso sobre a lingua na URSS dos anos trinta? Como se articulam essas séries dispersas, descontínuas e irregulares? Tomemos a lingüística romântica inspirada em Herder e Humboldt, por exemplo. Como ela é reinterpretada, retraduzida em uma outra problemática nos anos 30?
        Não é certamente uma pura repetição do mesmo, pois nos anos trinta as condições de produção de um discurso romântico sobre a lingua não têm mais nada a ver com aquelas do primeiro terço do século XIX! Entretanto a questão da língua na URSS nos anos trinta tem a ver com a inversão dos valores que aconteceu na Europa no fim do século XVIII entre o universalismo racionalista e o romantismo dos valores nacionais, a época das agitações que levam à Revolução francesa, a época em que a problemática de Adam Smith, Turgot ou J.J. Rousseau sucede àquela da Gramática de Port- Royal. Oposição por sua vez deslocada, retrabalhada em um outro terreno.
        Esta pespectiva não continuista, certamente, deve muito a Michel Foucault. Mas aplicada ao terreno do discurso sobre a lingua na URSS, terreno do qual Foucault nunca disse nada, ela me parece prometer numerosos desenvolvimentos.
        O interesse desta história e de suas intrincações é que os antagonismos que se mostram na lingüística soviética dos anos trinta tornam a se encontrar de uma maneira ou de outra, mas no interior de outras séries, atualmente e em outro lugar, se pensarmos, por exemplo, na maneira como um sociólogo como P. Bourdieu encara o problema da língua quando ele fala de "lingua legitima", ou no debate sobre a língua nacional reaberto nos anos 70 por pesquisadores tão diversos como Marcellesi, ou Balibar.
        Um imenso trabalho resta a fazer na exploração desse território ou quase tudo resta a descobrir para fazer conhecer esta problemática tão curiosa que é o estudo das relações de um pais com sua língua.
        Assim, come isolar as unidades com as quais se ocupar: todos os discursos teoréticos que falaram da língua formam uma mesma ciência? Todas as definições do objeto da lingüística são a busca e o afinamento progressivo de um mesmo conceito, ou deve-se reconhecer nelas uma incompatibilidade tal que tratar-se-á de ciências diferentes?
        Poderemos estudar os discursos sobre a lingua nos não lingüistas (na literatura, nos textos administrativos, políticos, filosóficos, etnológicos) tentando articular essas séries divergentes.
        E questionando a gramática russa e as idéias gramaticais sobre a lingua russa que poderemos tentar sair de uma positividade empírica mas também da confortadora das arborescências sintáticas.
        Posso voltar agora à questão que coloquei no inicio deste trabalho: "quando         nós saímos do caminho certo? Quando houve bifurcação?
        Parece-me que as coisas se estragaram a partir do momento em que o poder politico começou a impor um comando utilitário aos intelectuais. Isto não é uma revelação, e faz apenas arrombar uma porta aberta. Em compensação, creio que aprendemos a colocar questões ao mesmo tempo sobre a URSS e sobre a lingua: Marr e Stalin têm em comum uma cegueira à ordem própria da língua, um desejo de contornar a todo preço a materialidade própria da língua que se opõe ao seu domínio.
        Podemos nos perguntar igualmente sobre a URSS atual e ver que uma grande parte dos conflitos nacionais vêm da definição da nação e da língua por Stalin. Se a língua era apenas uma forma, não teriamos visto na rimavera de 1989 milhares de manifestantes moldávios nas ruas de Kišinev  (que se tornou desde então Chisinau) reclamarem o retorno de sua lingua ao alfabeto latino. Entretanto foi preciso reconhecer também que a definição stalinista da língua e da nação não era obra de um só homem, que ela tinha ela mesma uma história, que devia nos fazer remeter ao nascimento da lingüística romântica e da teoria herderiana da equação povo/lingua.
        Por isso a análise do discurso sobre a língua na União Soviética é lugar privilegiado de encontro de especialistas da URSS e lingüistas, terreno quase inexplorado por uma disciplina ainda à procura de seus conceitos fundamentais.

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[1] Numerosos esclarecimentos históricos foram tomados da obra de Samuelian-81

[2] como os filósofos na 11a tese sobre Fuerbach...

[3] diz-se (ou dizia-se...) Sprachkultur na RDA, por exemplo. cf Bresson-79 Cahiers de linguistique, d'orientalisme et de slavistique, N° 13, oct 79.

[4] E precisamente sobre Sapir que se apóia Meščaninov quando tenta demonstrar, por exemplo, que a palavra não existe fora da proposição. cf Meščaninov-40, em Zvegincev-65, p. 359-360. Esta questão foi extremamente pouco estudada. De fato o discurso soviético sobre a lingua se inscreve em uma aceitabilidade que ultrapassa de bem longe as fronteiras da URSS. E que são questões, nos anos 20-30, que se colocam também em outros lugares, em formações sociais totalmente diferentes, com sistemas políticos opostos, e dentro de problemáticas epistemológicas que parecem não ter nada em comum. Ocorre assim nas relações entre língua e pensamento (de Sapir e Whorf a Lévy-Bruhl), mas também nas interrogações sobre a precisão, e até a higiene da língua (o circulo de Viena).