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Centre de recherches en histoire et épistémologie comparée de la linguistique d'Europe centrale et orientale (CRECLECO) / Université de Lausanne // Научно-исследовательский центр по истории и сравнительной эпистемологии языкознания центральной и восточной Европы

-- Sériot P. : «Anamnésia da lingua russa e a busca de identidade na Russia», in Freda Ingursky e Maria Cristina Leandro Ferreira (éd.) : Os múltiplos territórios da Análise do Discurso, Porto Alegre (Brésil) : editora Sagra Luzzato, p. 23-36.

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        Jamais se havia ouvido falar tanto em recuperar a memória como atualmente na Rússia. É como se a memória de uma nação inteira tivesse sido apagada. Esse grande furor anamnésico que lá se produz neste momento encerra, no entanto, dois paradoxos.
        Não há quase nenhum país no mundo onde as descontinui- dades discursivas tenham sido tão violentas quanto lá; todas fundamentadas sobre a idéia de que o antigo (ou o passado imediato) deve ser destruído. Após o acontecimento fundador, que foi a Revolução de Outubro, em 1917, é o tema da memória que foi o mais freqüentemente posto à frente em toda prática de discurso, objetivando dar um sentido a esse acontecimento, essa ruptura, esse grande traumatismo inicial.
        O discurso sobre a memória da Rússia hoje em dia apresenta analogias, em certos aspectos, com a situação da Argentina pós- militar: uma população (uma parte importante, ao menos) parece despertar de uma espécie de sonho comatoso e parte à procura de sua memória. Na URSS, contudo, não somente o período de tempo sobre o qual se sustenta a anamnésia é infinitamente mais longo, mas também a conjuntura profunda tem isso de particular: ser uma busca acima de tudo de identidade coletiva. Um dos temas fundamentais dos debates da cena política russa atual é aquele da identidade cultural: “A Rússia pertence ou não à Europa?” Da resposta a essa questão depende em parte um tipo de política e de reformas que devem ser feitas. Ora, os discursos dos antagonistas, aquele dos “patriotas” (grosso modo, os conservadores tão nostálgicos da ordem sta- linista quanto ultranacionalistas “grands-russes”), e aquele dos “democratas” (partidários das reformas) têm em comum a reivindicação da verdadeira memória. Parecia mais a queda do comunismo do tipo soviético do que os discursos da resistência ao totalitarismo, caracterizando-se todos por uma luta contra a mentira, luta em que a
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circunstância não era somente a verdade, como também, e sobretudo talvez, a memória. Assim, à diferença de alternativa alética clássica do tipo Verdadeiro/Falso, a resistência ao totalitarismo, agora a in- tricação do falso e do esquecimento, do verdadeiro e da memória. Lembrar-se agora da resistência a um regime fundamentado sobre a anamnésia, e da queda desse regime, devia conduzir à clara contemplação da lembrança enfim exumada das fortalezas do esquecimento.
        Vê-se agora o quanto essa visão do discurso da resistência tinha de reducionista, já que a queda do regime não fez senão exarce- bar a reivindicação da memória nos protagonistas do debate obstinado sobre a identidade coletiva.
        Estudar a relação da memória (do discurso sobre a memória) com o acontecimento de 1917, tanto após 1991, quanto durante o período soviético, permite interrogar-nos sobre a periodização das rupturas e continuidades, bem como nisso que se convém chamar de “o discurso oficial”, ou “a ideologia oficial”, quanto, de maneira mais difusa, na história das “mentalidades”. Não faltam os estudos históricos que exploraram a representação da Revolução no decorrer da evolução do discurso oficial, sempre fascinado pelas comemorações, as solenidades, assinalando um tempo novo a partir do inicial absoluto que era a Revolução, mas flutuando fortemente quanto à representação da relação entre o antes e o depois dessa data-limite. Parece, no entanto, que um conjunto temático escapou largamente às investigações, aquele, entretanto, que está na base do discurso sobre a identidade: trata-se do discurso sobre a língua como fundador de uma identidade coletiva. Perguntar-nos se a língua russa é a mesma que aquela anterior à Revolução é uma outra forma de nos questionarmos se há permanência, continuidade ou ruptura, solução de continuidade da coletividade russa antes e depois da Revolução.

         ZERAR O PASSADO
        O esquecimento reivindicado

        Há uma forte ligação entre a recusa da memória e a dissolução das fronteiras da identidade coletiva. Aqui surge um dos pontos essenciais para compreender a especificidade do tema da recusa da memória no discurso bolchevique do início dos anos 20, que se caracteriza pela instauração voluntária e sistemática de uma desconti- nuidade, em que o passado é assimilado ao obsoleto e ao inútil, e o
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passado nacional a qualquer coisa de negativo. É a época na qual a escola histórica de M.N. Pokrovskij considera a Rússia tzarista como a “prisão dos povos”.
        É preciso dizer ainda que essa ruptura com o passado no novo discurso dominante foi amplamente aceita por numerosas correntes artísticas, literárias e intelectuais. Sem contar o Proletkult e a RAPP[1], que,sendo os principais beneficiários ao mesmo tempo que protagonistas, faz-nos pensar nos formalistas, muito ligados aos poetas futuristas.
        É entre os últimos que o esquecimento dos valores da cultura nacional tradicional foi valorizado de forma mais explícita: “É preciso lançar Pouchkine e Tolstoi para debaixo da modernidade” (V. Khlebnikov: “Bofetada ao gosto do público”). Mas é, sem dúvida, o trabalho de destruição dos nomes que deixou uma marca mais profunda no mundo simbólico da Rússia dos anos 20. Os sobrenomes, primeiro, todos fixados como no período da Revolução Francesa, sendo escolhidos como exaltações de um mundo novo: Vladen (Vladimir Lenin), Engelsina... Os nomes de lugares, em seguida (mas mais massivamente no período seguinte, quando, entre 1933 e 1940, mais de 200 ruas e praças de Moscou trocaram de nome). De fato, o tema do esquecimento é por si só resumido por um de seus slogans do início dos anos 20: é preciso “se reeducar”, para deixar de ser “um homem do mundo passado”.

        À nova cultura, língua nova

        É fora da lingüística acadêmica que encontramos as primeiras declarações sobre a necessidade de construir uma língua essencialmente nova, uma língua sem nenhuma ligação com o passado infame, que fosse como aquela dos poetas futuristas ou dos teóricos do Proletkult: dentre as tarefas do “programa máximo” dos futuristas aparecia aquela de “reorganização consciente da língua para fazê-la conformar-se às novas formas de vida” (Tret’jakov, 1923, p. 202).
        Se os textos de Marr permanecem em nível das declarações, há uma língua universal bem concreta que foi realmente utilizada na Rússia dos anos 20: o esperanto. Certamente, o esperanto existia desde antes de 1917, era praticamente o apanágio de respeitáveis intelectuais das classes médias urbanas. O jornal dos esperantistas russos de antes de 1917, Lu ondo de la espéranto, interessava-se, acima de
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tudo, pela paz e liberdade do comércio. No entanto, a Revolução carrega aqui ainda uma grande confusão, pois apareceu logo um novo esperanto, o esperanto proletário,com particularidades lingüísticas diferentes do “esperanto burguês” (cf. Sériot, 1988).
        Uma língua sem memória feita para tornar imprecisos os limites da identidade coletiva, eis a utilidade do esperanto no discurso bolchevique dos anos 20. Encontraremos um exemplo na ciência- ficção soviética dessa época, descrevendo um mundo onde a humanidade, enfim unificada, não fala russo mas, a maior parte do tempo, esperanto; mundo cosmopolita onde a capital é mais freqüentemente Londres ou Paris do que Moscou, e onde a Rússia é uma parte dos Estados Unidos socialistas da Europa, ou, tão simplesmente, um setor indiferenciado do planeta, em suma, um país como os outros (sobre esse aspecto, cf. Stites, 1989, p. 180).
        Quanto à língua russa em si, ela não escapou às tentativas dos feitores de língua. Em 1930, ainda A. V. Lunacarskij, delegado popular na área da Educação, propunha fixar-se ao problema da latini- zação do alfabeto russo. Segundo ele, a reforma ortográfica de 1918 tinha sido somente uma meia-medida. Era preciso ir além com a passagem do alfabeto cirílico ao alfabeto latino, tanto mais urgente pois os russos, desde que os turcófonos da União utilizavam um alfabeto latino, estavam isolados tanto a leste como a oeste de seus vizinhos utentes desse alfabeto. Aqui ainda os limites da identidade mantinham-se vagos. Quanto ao risco de perder a memória, era explicitamente admitido que isso pouco importava:

Pouco a pouco os textos [russos - P.S.], escritos com o alfabeto russo, transformar-se-ão em objeto de estudos históricos. Será, é claro, sempre útil estudar a escritura russa para ter acesso a ele. Isso poderá ter sua utilidade para aqueles que se ocuparão da história da literatura. Mas, para a nova geração, será cada vez menos indispensável.

        Existe uma língua da nação?

        Sabemos como a literatura reagiu à Revolução, da aceitação entusiasta à rejeição total, entretanto, sabemos muito pouco a respeito de como os lingüistas reagiram às modificações da língua. Parece que os contemporâneos, pelo menos no início, não sentiram os transtornos do léxico como uma anamnese. Os primeiros sinais, “em estado febril”, dizem respeito essencialmente ao afluxo de abreviações provenientes do estilo telegráfico dos despachos militares, e as
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novidades do período revolucionário não estão separadas daquelas da guerra (cf. Mazon, 1920; Jakobson, 1921; Karcevskij, 1923).
        Mas, desde a segunda metade dos anos 20, os membros do Jazykfront (organização que visava a opor-se à influência dos marristas na construção de uma lingüística marxista), e mais particularmente G. K. Danilov, na revista Revoljucija i jazyk (“A Revolução e a Língua”), amoldava-se a denegar toda a realidade à idéia da língua nacional. Segundo eles, não existem senão línguas diferentes de diferentes classes. Danilov tentava encontrar elementos próprios à “língua dos operários de choque” os quais não existiam naquelas línguas dos representantes de outras classes sociais[2]. Mas os marristas seguiam a mesma idéia. Assim, para V.B. Aptekar: “Atualmente, para nós, é evidente que é a língua dos operários, acima de tudo, que vai assumir um lugar predominante na literatura, e nós perseguiremos as particularidades da língua dos intelectuais” (texto do final dos anos 20, citado por Alpatov, 1991, p. 67).
        Não se trata aqui de criar por completo uma língua universal do proletariado, mas de fazer emergir uma nova norma, aquela das antigas classes desfavorecidas, sem tradição e sem memória: a língua dos proletariados urbanos, os Komsomols, e mesmo da plebe (a “blatnaja muzyka”) , mas em nenhum caso, a língua desses outros explorados: os camponeses, os quais tinham uma memória coletiva, quase hermética aos slogans do poder político. Oportunizou-se, nos anos 20, sobretudo entre a juventude das fábricas, fazer um largo uso da gíria dos ladrões, para assegurar sua rejeição à intelligentsia. Chamava-se, então, esse uso “língua proletária”. No início dos anos 30, ainda prevalecia, nas publicações marristas, a idéia de que a língua única da nação é um engodo:

Os pensamentos da classe dominante são a cada época os pensamentos dominantes, ou seja, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. O mesmo vale para a língua. A língua da classe dominante é sempre ornamentada com o manto da universalidade e ela se impõe às outras classes da sociedade como língua obrigatória, comum e única. (Zolotov, 1932, p. 34)

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        Desde 1926, entretanto, vozes contrárias se faziam ouvir na imprensa, as quais conclamavam os jovens Komsomols a falar uma “língua cultivada”, uma língua que pertencia à toda coletividade: “Nossa língua é nosso bem, nossa cultura. Não é necessário recear a instrução, não é necessário temer a cultura da intelligentsia” (Ma- rkovskij, 1926, citado em Seliscev, 1928, p. 80).

         A CULTURA DA LÍNGUA

        O semioticista de arquitetura e urbanismo Vladmir Papernyj propôs em seu livro “A segunda cultura” uma tese marcante, consistente em considerar que a uma primeira cultura, àquela, grosso modo, dos anos 20, orientada em direção ao internacionalismo e às construções horizontais, sucedeu, nos anos 30, uma “segunda cultura”, curvada sobre si própria, e caracterizada por gigantescos arranha- céus da época stalinista. Essa tese parece se aplicar perfeitamente bem ao domínio do urbanismo, e, em particular, à cidade de Moscou. Não é suficiente, entretanto, para dar conta de todos os aspectos do domínio que nos ocupa aqui, qual seja, aquele da memória da língua e da identidade coletiva.
        Com efeito, no discurso sobre a língua coexistem, desde a metade dos anos 20, tipos de memória e de relação com a língua muito diferentes, até francamente contraditórias.
        Os anos 20 poderiam ter sido os anos da “tábula rasa”, de uma nova memória, iniciada do zero, de uma nova identidade coletiva. No entanto, muito rapidamente se instalou um compromisso econômico - a “NEP” mas igualmente um compromisso cultural. Lênin apresentou antes da Revolução a idéia das “duas culturas”: aquela da burguesia e aquela do proletariado, devendo somente a última ser desenvolvida e promovida (Lênin, 1913, citado em Hamant, 1992, p. 75-76). Mas ele denunciou, após a Revolução, as tentativas do Proletkult de criar uma cultura inteiramente proletária, ele pôs obstáculos à difusão das obras de Majakovskij e dos futuristas, e sua “revolução cultural” consistiu essencialmente em tornar obrigatória a aprendizagem da leitura para todos.
        A “segunda cultura” despreza a memória de maneira ainda mais desorientada que a primeira. A partir da metade dos anos 30, nomes desaparecem (aqueles das pessoas engolidas pelos expurgos) mas nomes de outras reaparecem, que haviam sido esquecidas nos anos 20: trata-se, por exemplo, dos heróis da história nacional russa.
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        Assim, o general Kutuzov, vencedor de Napoleão, considerado nos anos 20 pela escola histórica de Pokrovskij como um proprietário de bens, explorador de servos, torna-se um libertador da pátria russa. Cria-se, assim, um elo histórico entre o antes e o após 1917, um elo de consubstancialidade entre o povo russo de antes e aquele de agora. Fechamos uma memória para reabrir uma outra.
        Mas no domínio da língua se faz rapidamente ouvir um con- tradiscurso, que assegura não ter havido ruptura em 1917: é o discurso da “cultura da língua”.
        Se a lingüística marrista, negando toda existência de uma língua nacional, tornava-se a doutrina oficial nos anos 30, existiam, em compensação, outras práticas, as lingüísticas “selvagens” ou “espontâneas”, que coexistiam com ela, parece, numa ignorância recíproca. Assim, partindo da linha geral do discurso sobre a língua em curso à União dos escritores, na direção da qual se encontrava M. Gorkij, que, sem descanso, repreendia os aprendizes-escritores, ordenando-lhes “aprender através/nos clássicos”. Na revista Literatumaja uceba (“A aprendizagem literária”), fundada em Leningrado, em 1930, com L. P. Jakubinskij, Gorkij ensinava que é somente conhecendo a cultura passada que é possível construir uma cultura proletária, sem solução de continuidade com aquela que a precedeu, ou seja, a língua russa dos clássicos do século XIX (cf. Demickaja, 1974, p. 406).
        A “segunda cultura” começou quase ao mesmo tempo que a primeira, desde os artigos de G. O. Vinokur sobre o tema da “cultura da língua”, aproximadamente em 1923. Desde essa época, insis- tiu-se fortemente sobre a idéia de que a língua constitui o vínculo entre as gerações de um mesmo povo, que ela é garantia de identidade nacional, que não há nação sem língua comum e, que, enfim, a língua é a memória do povo, uma memória cumulativa:

A língua é uma característica essencial e estável da nação, é o fundamento de sua atividade social e laboriosa, a forma específica do pensamento nacional, da cultura nacional, da expressão do espírito e da vida cotidiana da nação. Como um espelho, ela reflete o passado e o presente do povo com suas alegrias e misérias, seus sucessos e suas perdas. É sobre ela que repousa essencialmente o sentimento patriótico, a consciência de sua natureza étnica [...]. A língua dá uma alma ao elo vivo, potente e sólido, que liga as gerações passadas, presentes em um todo histórico grande e vivo. (Kostomarov, 1975, p. 17)

        Medimos, então, o grande mal-entendido da visão marxista ocidental da URSS: isso que os lingüistas ocidentais tomaram muito
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tempo na lingüística soviética como a “tese marxista do reflexo” (no sentido da covariância) era, de fato, essencialmente, um avatar da ideologia romântica da língua como expressão específica da alma do povo, como acumulação de saber, como tesouro “de prazeres e castigos” de uma comunidade falante indivisível que tinha por nome “o povo”. A “segunda cultura” se encontra na exata confluência de duas grandes ideologias que tinham muitas chances de se reencontrarem um dia: o romantismo e o totalitarismo. Todas as duas têm em comum a idéia do “povo-uno”, totalidade não contraditória, sem desejo e sem ausência, unânime no sentido primeiro da palavra, identidade coletiva não fazendo senão um só corpo e uma só alma, essa grande metáfora, que percorreu todo o século XIX, segundo a qual “um povo é como um indivíduo”. Assim, segundo Vinogradov ainda: “A língua não é somente um possante instrumento de cultura, não somente o fator mais importante do desenvolvimento espiritual da nação, mas é sobretudo uma forma muito ativa e expressiva da criatividade nacional, da consciência de sua nacionalidade” (Vinogradov, 1945, p. 3).
        A “língua-memória de um povo” é, então, ao mesmo tempo, causa e conseqüência dessa ideologia que implica a idéia de uma língua única e unificada: nenhuma variação espacial ou social é possível para este organismo vivo que é a língua-memória. A única variação considerável: variação temporal, não podendo ser feita senão sobre o modelo de enriquecimento, de acumulação de palavras e sa- beres.

         E AGORA,O QUE FAZER?

        Na época da Perestrojka, as mais altas instâncias governamentais incitaram as pessoas a se lembrarem, a se voltarem em direção ao passado para dar um sentido ao presente. Desde 1987, reabilitavam-se nomes desaparecidos das memórias (Boukharine), reim- primiam-se obras dos anos 20 não encontradas depois de muito tempo nas bibliotecas (um fenômeno como G. Spet, mas também filosofias religiosas como P. A. Florenskij). Podemos dizer entretanto que apareceu uma “terceira cultura”, que seria uma terceira forma da memória coletiva na Rússia depois de 1917?
        Há na palavra an/a/mnèse uma dupla negação: apagar o apa- gamento, esquecer o esquecimento, aniquilar o aniquilamento, mas não o lado positivo de construção de um discurso, de formação de
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uma memória por um trabalho de escritura. A busca apaixonada de lembranças e das revelações na Rússia atual acompanha-se muito pouco de uma interrogação sobre os modos de construção de um novo conjunto discursivo. Ora, bem seguidamente não se trata mesmo de reescritura, mas de escritura tão simplesmente. Os esforços sobre-humanos empreendidos a partir de 1985 para reencontrar a memória perdida tropeçam em graves dificuldades de escritura. A anamnésia não pode encontrar na identidade algo perdido, mas só pode reinscrever migalhas esparsas do passado num novo discurso, o in-formar, para dar-lhe sentido: erguer um retrato do tzar Nicolas II nas ruas de Moscou, em 1993, não tem o mesmo sentido que em 1994.
        Qual é o sentido atualmente, então, da anamnésia na argumentação sobre a língua? J-J. Courtine interrogou-se longamente sobre “os processos de inscrição do acontecimento no espaço da memória”. Ora, o que faz a especificidade do discurso anamnésico sobre a língua é precisamente que não há acontecimento, pois, mesmo que o tema da busca mnemônica seja sobre-representado. Quais são as razões dessa presença maciça do tema da língua no novo discurso político, tanto aquele dos “democratas” quanto aquele dos “patriotas”? Podemos ver aí essencialmente um indício de um problema mais difuso, menos explícito, que transcende as clivagens políticas: aquele das fronteiras da identidade coletiva.

        A guerra toponímica e a ecologia lingüística

        A reivindicação dos “nomes de lugares autênticos” cabem tão bem ao discurso patriótico quanto ao discurso democrata. A partir de 1987, criou-se um “Conseil Social pour la Toponymie”, sob os auspícios do “Fonds Soviétique de la Culture” (transformado mais tarde em “Fonds Russe de la Culture”). Em abril de 1989, realizou- se em Moscou um colóquio com o título sugestivo: “As denominações históricas, monumentos da cultura”, tendo por objetivo propor meios para “fazer renascer os nomes que têm um valor histórico”e para dar-lhes uma “proteção jurídica e social.” Trata-se de “devolver”, de “restituir” os nomes originais aos lugares, para reconstruir a “herança histórico-cultural” da Rússia, que foi submetida a uma destruição maciça.” (Neroznak, 1989, p. 77-78). Os “nomes históricos” são “monumentos da história, da cultura e da língua do povo”, que devem ser “restituídos ao povo e protegidos” (id., p. 79). O nome não é somente um objeto do patrimônio, ele é a marca da permanência do tempo: “O nome não existe somente no espaço, mas
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igualmente no tempo, refletindo as etapas históricas do desenvolvimento da sociedade. É por isso que a estabilidade da toponímia tem uma significação imutável para a cultura do povo” (id., p. 81).
        Mas o fato essencial é que a argumentação geral da luta dos nomes tem na Rússia uma coloração profundamente, essencialmente ecologista. Não somente pelo tema da proteção dos nomes, como se se tratasse de espécies em via de desaparecimento, mas, sobretudo, pela metáfora do meio biológico:

“Da mesma maneira que os conjuntos arquitetônicos formam os centros histórico-culturais das cidades, as denominações históricas constituem a paisagem toponímica cultural das cidades e lugarejos, elas são um meio toponímico histórico- cultural original” (id., p. 81).
        Em ecologia, utiliza-se, cada vez mais, o termo “meio”, “meio do habitat humano”. O meio toponímico é também uma parte do meio ecológico do homem, sua parte espiritual.
        A ecologia do nome é um dos componentes da ecologia da cultura (ib., p. 82).

        Notaremos o quanto no mundo da epistemologia russa atual a reflexão biológica e a reivindicação da memória estão ligadas. É que antes de tudo, esse mundo coloca a unidade da natureza e do homem, ou, mais exatamente, do “povo”, que é a única verdadeira forma de existência do indivíduo. A “ecologia lingüística” não é um pensamento metafórico: é preciso tomá-la ao pé da letra. Assim, não é espantosa a idéia de que uma atividade de “despoluição da língua” seja um aspecto essencial da ecologia lingüística. Para L. I. Skvorcov (1988: “A cultura da língua e a ecologia da palavra”), a língua russa está em perigo, como também a natureza russa:

A língua de cada povo é acumuladora de sua cultura, ela registra a memória histórica da palavra, e a cultura da língua é a soma dessa memória, enquanto liame espiritual indissolúvel entre as gerações. Na nossa época, a cultura da língua é a parte mais importante da ecologia da cultura. As discussões que aparecem na imprensa sobre o estado atual do uso das palavras são empréstimos de uma preocupação de purificação da língua russa das palavras vulgares, dos jargões e dos empréstimos que a sujam (p. 3). 

        A coerência desse discurso é fundada sobre uma ideologia vitalista, sobre a grande metáfora organicista que percorreu todo o século XIX, e que torna lícito falar das ‘doenças’ da língua como organismo em perigo.
        Skorcov define a ecologia como ciência das relações entre os organismos vivos e o meio circundante, e, mais particularmente, en-
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tre o homem e a biosfera. Mas, diferentemente do que se passa no Ocidente, a ecologia na Rússia estendeu-se a toda esfera social: falaremos, dessa forma, de uma “ecologia da ética”, de uma “ecologia do homem”, de uma “ecologia da cultura” e de uma “ecologia da língua”. Assim, a ecologia da cultura, segundo D. S. Likhatchev, é “a luta contra a falta de espiritualidade, para a proteção do meio cultural”. Segundo X. L. Janin, é “a conservação do código genético de nossa memória histórica” (citado por Skvorcov, 1988, p. 4). Enfim, para Skvorcov, a ecologia da cultura tem por objetivo “o estudo do meio cultural como totalidade única e a conservação desse meio” (Skvorcov, 1988a, p. 9).
        Entretanto, se a apelação “ecologia lingüística” é nova, a argumentação contemporânea o é muito pouco: o discurso dos “patriotas” sobre a memória e sobre a língua é, em todos os pontos, idêntico àquele da época da “ estagnação”. Não há uma “terceira cultura”. “A língua registra a história do povo. A língua é a própria cultura , o processo e o resultado de sua acumulação e de sua renovação!)..]. Ninguém iria até o ponto de se desfazer de suas raízes culturais nacionais, de suas fontes, de seu ‘meio de vida’” (Skvorcov, 1988, p. 9).

        Da identidade

        Se há um tal continuísmo nos processos discursivos de épocas tão diferentes, é que a definição de identidade coletiva não mudou: um povo-Uno, falando a mesma língua, memória de uma nação fundada sobre a cultura de uma etnia e não sobre um projeto político:

A língua é uma particularidade distintiva do povo, o ponto central de suas particularidades e de seu espírito nacional. A preocupação com o desenvolvimento e a pureza da língua, ou seja, com a conservação da alma da nação, deve começar com a atenção voltada à aprendizagem da língua materna na escola [...]. Nossas crianças aprendem o nome dos deuses gregos, mas não conhecem os nomes dos primeiros escritores russos e a língua de seus próprios ancestrais]...]. A palavra [...] conserva a sabedoria do povo. A criança deve sentir a palavra não só por sua beleza, mas também por sua energia espiritual, como testamento transmitido por seus ancestrais. (Sudakov, 1991, p. 3-5)

                           socialista”. Mas uma pressuposição maciça permanece idêntica em relação ao período stalinista-brejneviano: há con-
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substancialidade entre as gerações do povo, identidade do povo em relação a si próprio no decorrer dos tempos: “Podemos agora nos convencer de que Usinskij tinha razão de dizer que ‘a língua é o elo mais vivo, mais sólido e mais rico que liga as gerações passadas, presentes e futuras do povo em uma grande totalidade histórica viva’” (Podčasov, 1991, p. 155).
        Quanto ao povo, ele se caracteriza por sua cultura [cf. este texto recente extraído de uma revista do exército (Armija i Kulk’tura)\:

O país é a cultura. A cultura são as tradições e o respeito que nós devemos ter em relação a ela, e não unicamente à cultura do momento presente. Sem conhecer a cultura de uma sociedade, torna- se impossível de nela educar um homem tendo consciência de sua própria dignidade, tendo respeito por si próprio, seu país e seu povo. O respeito dos outros supõe em primeiro lugar o respeito por si próprio, e por conseqüência, o conhecimento de si, de seu povo e de seu próprio passado. (Trubačev, 1992, p. 8)

        De que trata então o discurso dos “democratas” sobre a língua? Se eles não partilham das idéias paranóicas dos patriotas sobre o etnocídio dos russos, os primeiros têm, em todo caso, em comum com os segundos um implícito maciço: o povo russo é um, ele tem uma língua e essa língua está em perigo. Certamente, para alguns, as causas do perigo vêm do exterior, dos inimigos da Rússia, ainda que, para outros, a responsabilidade pelo declínio da língua russa esteja em responsabilizar a nomenclatura burocrática ignorante que esteve no poder por tanto tempo. O nome mesmo dos dois discursos antagonistas: democrata e patriota, indica menos um programa político que uma concepção da identidade coletiva, uma definição (cívica X étnica) da nação. No entanto, seus discursos sobre a língua em muitos pontos coincide: há uma interferência dos limites entre eles desde então, que é a questão da relação entre língua e identidade. Para além dos meandros da política, uma mesma interrogação está sub- jascente às discussões sobre a memória da língua: é a identidade coletiva dos russos que está em jogo. Para alguns, a memória remete a uma noção ontológica do povo-substância; para outros, às lutas do povo contra seus carrascos. Mas a memória profunda, a memória ignorada tem para uns como para outros, isso de particularizar, de fazer como se nenhuma reflexão sobre a divisão da sociedade e dos sujeitos falantes existisse. Neste sentido, a memória estende as discussões sobre a língua na Rússia, remete, de uma só vez, à episteme que percorreu todo o século XIX, antes de nós descobrirmos que a língua era um sistema de materialidades negativas.
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        Não há “terceira cultura” na Rússia, mas uma luta, ao final, tão incerta quanto, no século XIX, entre duas concepções de identidade coletiva russa: “slavophile”[3] ou ocidentalista, envolvendo duas maneiras de pensar a memória nacional, duas formas de construir uma comunidade imaginária.
        A memória superficial mascara a longa durabilidade da memória profunda: o mito romântico da unidade do povo, de sua inocência primeira e de sua relação especular com a língua, em que a denegação da divisão pressagia desfavoravelmente o progresso da democracia.
        Todo esse grande conjunto discursivo neo-romântico não funciona senão graças a uma metáfora, a uma metáfora que, na Europa Central e Oriental, e amanhã, talvez, igualmente na Europa Ocidental, é o fundamento do discurso sobre a identidade: “um povo é como um indivíduo.” Metáfora que fundamenta a idéia de permanência do povo na sua substância, remetendo, assim, cegamente ao fato discursivo, ao fato de que tudo isso que faz ligação entre os ancestrais e os descendentes de um mesmo “povo” (a menos que nós coloquemos o princípio biológico de uma identidade nacional), é a identidade de seu nome. Eis aqui a lição que nós chamamos de Adso, o nominalista narrador de O Nome da Rosa: “Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus.”

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Traduzido por Teresinha dos Santos Brandão e revisado por Cíntia da Costa Alcântara.



[1] Associação russa dos escritores proletários.

[2] Podemos nos concentrar nos debaces que percorreram a Sociolingüística européia nos anos 70/80: a hipótese do “código restrito” e do “código elaborado”, em Bernstein, ou a resposta de lingüistas à idéia de “língua legítima, de P. Bourdieu (KERLEROUX, 1984). Poucos desses lingüistas tinham consciência, naqueles anos, que retomavam idéias que tinham agitado a Rússia meio século mais cedo.

[3] Slavophile (1872): dizia-se, no século XIX, na Rússia, daqueles que pregavam valores espirituais tradicionais e que se opunham aos ocidentalistas. (Lexis) (N.T.)